- Como obséquio de minha escravidão por amor -

29 de novembro de 2014

Nascimento da Bem-aventurada Virgem Maria

Alvorada da redenção


Que novo luzeiro palpita na abóbada estrelada?
250
Que novo esplendor aclara as regiões da aurora?
Que novo fogo relampeja nas profundezas do céu?
Que nova chama cintila de de insólito fulgor?
Que nova luz derrama seus raios pelo mundo em trevas?
Que nova luz nascente ofusca os olhos meus?
255
Eis que desponta um clarão mais intenso,
aurora mais radiante se levanta,
rutila nos alcantis um astro mais fulgente!
     fulge com mais rubor
     a aurora cor de rosa
tingindo com raios de ouro os seus cabelos.
O admirável cortejo hoje avança mais belo
     pela cúpula luzente,
260
faiscando veloz em seus carros de fogo.
Mas eu, que faço eu, ainda a principiar?
     Essa nova luz
mergulhou-me nas trevas os olhos,enganou-me
     com seu intenso brilho.
É que agora, onde nenhuma luz havia,
     se alteia uma lâmpada
     mais fulgida que o sol.
265
Desde as primeiras origens deste mundo,
a caterva infernal tudo cobrira
     com o véu da confusão.
A noite tudo dominava com pavor sombrio,
tudo mergulhara em horrorosas trevas.
     Nenhuma aurora conseguira
expulsar as trevas que pairavam sobre o mundo
270
e afugentar os negros corcéis da noite.
Eis, porém, que a treva envolta em sombras,
contempla nas dobras serenas do céu
o primeiro clarão da luz desterrada.
Esta estrela de novas cintilações envia
a luz diurna que põe termo às trevas da noite.
275
     Bela entre as mais belas
ela precede a deslumbrante claridade,
e, majestosa, anuncia o sol do dia eterno.
     Esta é a estrela
que se desprendeu da estirpe de Jacó
e não há de sofrer a influência das trevas.
     Porventura, ó minha alma
ainda te queres engolfar em negras sombras?
280
ainda sobre os olhos te pesará a noite eterna?

28 de novembro de 2014

Conceição da Virgem Maria

"Colóquio amoroso"


     Ouves, ou eu me engano,
ouves o murmúrio incerto de minha voz tremente?
     ou, vida adormecida,
jazes sob o véu do seio maternal?
235
Talvez que transbordante de impureza, prenhe de vícios,
minha alma obstruiu os teus ouvidos...
     Oh! temo sem motivo...
     para longe vãos temores!
Não me engana a suave imagem desta mãe bondosa.
Eu sempre assim te conheci, espelho imperturbável:
240
a bondade de tua índole, achei-a sempre igual.
     Inda que a fresca noite
deixasse de destilar o brando orvalho
e de soltar sua água as nuvens carregadas;
     inda que as fontes límpidas
negassem ao viajante os olhos borbulhantes
     nem fosse transparente
a linfa do regato que desliza:
245
     jamais tuas entranhas
deixariam de verter torrenciais de amor,
jamais se secariam teus largos rios de doçura!
Oxalá me incendeie todo inteiro
     em fornalha infinita
     o doce amor de teu amor!

27 de novembro de 2014

Conceição da Virgem Maria

"Contrição aos pés da Virgem"


205
Ai de mim! por que é que eu, cego de vil amor
     à minha imundície,
te desprezei, ó mimo da Criação?
Por que se não renderam a tanta luz maus olhos?
Por que tanta fragrância me não inebriou o coração?
     Oh! infeliz de mim!
requeimei o viço de minha carne e de minha alma,
210
riquezas com que o Pai celeste me prendera:
     E ausentando-me p'ra longe
     abandonei pai e mãe
lançando minhas obras contra ti, contra Deus!
     Agora enfim regresso,
à procura de meu pai, de minha mãe
     e espero com teus méritos
encontrar a ti e encontrar a Deus.
215
Permite que infeliz me prostre aos teus umbrais,
não cerres duramente a porta às minhas súplicas.
Deixe que aqui passe inteiras as noites,
que aqui chore inteiros os dias!
A meu peito seja tua conceição casto prazer,
220
delícias, descanso, êxtase de amor
Purifique-me contemplando-a, revolvendo-a
     na mente agradecida:
fujam dela as impuras imagens de outrora.
Derrotará ao sujo amor teu casto amor,
embalsar-me-á tua fragrância
     o mau hálito do peito.
225
Ó Virgem carinhosa tu que acolhes 
os amantes da nívea castidade,
aprendida na escola de teu exemplo,
se a ti eu, com o coração manchado
     me voltei mais tarde,
quando as mãos me pousaste ao afagar-me
     sobre a alma semimorta:
não deixes de aquentar-me com o ardor do teu peito,
     para que a chama desta carne
arrefeça vencida em tuas labaredas,
e reflita sem sombra
a castidade que te consagrei um dia,
conservando sempre assim meu juramento.

26 de novembro de 2014

Conceição da Virgem Maria

"Tesouro do justo"


     Bem-aventurados aqueles,
cujo peito e aspirações todas vai devorando
     o fogo do teu amor!
185
     Bem-aventurado quem
na solidão bendita de uma noite serena,
de tanto te amar, em ti medita,
e de tanto meditar mais te ama!
     Bem-aventurado quem
se assemelha ao limiar de sua virgindade
e vigia de contínuo as tuas portas.
     Quem no peito amante
revolve as altas glórias de tua conceição,
190
que é a porta de ouro da tua vida.
     Ele experimentará
o carinho inefável do teu amor
e envolverá num corpo casto uma alma pura.
     No peito do Senhor
há de sorver a verdadeira salvação,
há de achar em seus mimos o tesouro da vida.
195
Ó amor, ó bondade imensurável do Pai supremo,
que te cinzelou com sua destra, como um lavor celeste.
     Exalte ao Senhor o céu,
para quem esta joia se prepara,
E com lábios agradecidos transborde em novos hinos!
     Louve-o também a terra,
por tão belo presente venturosa,
200
pois gera num só bem todos os bens!
     Também a minha alma
reverente te adora, ó Pai celeste,
e com a pequenina Virgem o meu amor te exalta!
     Oh! formosura,
da nossa estirpe glória encantadora,
resplendor de modéstia, candor de pureza!

25 de novembro de 2014

Conceição da Virgem Maria

"Esperança do pecador"


Quando a tua conceição o mundo inteiro alegra,
por que eu só cairei vergado de tristeza?
Talvez, porque negras faltas me roem o coração,
160
que geme a vista de suas asquerosidades?
Talvez, porque o lodo odeia a pureza,
     como as trevas a luz,
e a virtude para o coração perverso
     é sempre um espinho?
Talvez, porque os olhos impudicos fogem
     do semblante casto
e a luz da virgindade atormenta os impuros?
165
     É a verdade, confesso-o,
e ela seria capaz de mergulhar-me no abismo
a pobre alma com tanta carga de tristeza
se tua bondade não viesse dilatar-me
     o peito acabrunhado
se meu coração fugisse por completo
     ao teu seio materno.
A tua luz desbarata as trevas
a tua pureza purifica o lodo
170
a tua virtude afugenta o crime.
Seguirei impuro a tua pureza:
meu coração se unirá ao teu
para despojar os andrajos do pecado.
Mas, o que foi concebido no lodo desta terra
     quem o purificará?
Quem em torrente cristalina há de lavar
     uma macha maldita?
175
     Só a tua pureza
o há de conseguir, imaculada Virgem,
única liberta do mal hereditário.
Cúmplice envilecido do paterno crime,
eis que trago do seio de minha própria mãe
     a raiz da iniquidade.
Na voragem do lodo imundo mergulhada,
180
a vida me apodrece corroída por seus males.
Tu, fonte cristalina de pureza,
     terror da maldade,
banha-me o coração nas torrentes da vida.

23 de novembro de 2014

Conceição da Virgem Maria

"A alegria do Criador"


De infinita alegria tressalta o sumo artista,
ao remirar-se na maravilha de suas mãos.
135
Ao contemplar a ondulação inquieta do oceano,
e, a brincar pelos caminhos do mar,
     os variados monstros;
     ao ver a terra imóvel
com a carga dos mundos ao ombro
e ao colo com quanto alimenta em seu materno seio;
ao dispor em harmonia majestosa
     o turbilhão dos astros,
140
habitados por infinita floração de anjos;
se, com a obra acabada, que à sua voz surgiu,
o autor destas maravilhas se extasia:
     tu, ó formosa menina,
és, sob todos os aspectos, para o Pai supremo,
a mais transbordante fonte de alegria.
145
Ele exulta, afagando sobre o peito imutável,
a glória de te ter plasmado imaculada.
O artista burilou até a perfeição
esta obra predileta de seu braço
     e a antepõe às mais.
Nem a terra, nem o céu podem competir contigo:
150
     ante a tua formosura
o firmamento e as suas colunas cederão.
Anda enleada a multidão dos anjos
     no singular fulgor
que escapa ao véu do materno seio.
Se a natureza te modelou pequenina,
imensa te irá formando a divina graça.
155
Ó maravilha, ó nobre criação
     da destra divinal!
ó morada mais grandiosa que o universo!

22 de novembro de 2014

Conceição da Virgem Maria

"A alegria do mundo"


115
Exulte à conceição de tão grande princesa
    a terra inteira, que gemeu
sob o céu indignado tanto tempo!
Eis que voltou aquele esplendor do alto,
    aquele suave aspeto,
anuviado pela culpa do primeiro homem.
Rasgaram-se os nimbos, sorriram os pórticos do céu
120
     e o firmamento aplacado
mostrou de novo seu festivo rosto.
A tua conceição, ditosa Virgem,
     por mimo do Senhor,
conserva a glória da justiça original.
Para iluminar o céu, és luz celeste;
para purificar a terra impura
pura apareces de qualquer mancha.
125
E a dor e a causa de dor tão longa, o crime,
lançam-se em fuga vertiginosa, à tua vinda.
     Com razão se alegra o céu,
ao ser concebida a digníssima princesa,
que ao depois dará a luz ao seu Senhor.
     Com razão se alegra a terra,
porque, nascida embora do nosso barro,
130
serás a glória, a luz, a formosura
     do firmamento estrelado.
Congratula-se com a terra o mar, com o mar o céu,
com suas criaturas o próprio Criador.

21 de novembro de 2014

Conceição da Virgem Maria

"Derrota do inferno"


     Chore o inferno voraz!
Na virgem, ora concebida, não há mancha:
     sim, chore o inferno voraz!
E tu, abaixa a sanguinolenta fronte,
     hedionda serpente:
90
No bojo comprimido te lateja a calda vencida!
Esconde, soberbo monstro, no enroscado corpo a fronte,
retrai a cerviz, esconde-a, soberbo monstro!
     Eis que vem a mulher,
aquela mulher mais forte do que o homem,
a que há de romper teus insidiosos laços.
95
Por que cantas vitória, miserável?
Por ter outrora a primeira mulher
metido em tuas redes os pés incautos?
     De que te alegras, malvado?
     de ter ela levado o esposo
a conspurcar inteira a geração humana?
Eis que da carne do primeiro homem
     brota agora uma Virgem,
100
que, única entre todos, desconhece este crime!
Isenta do ferrete, livre da maldição antiga,
foi a única a esquivar-se aos teus agravos.
     Ela, implacável,
sustentará, contra ti e contra a tua raça,
     medonha e crua guerra.
105
E tu, perverso monstro
varrendo o solo com o peito infeccionado,
acometerás de rojo seu calcanhar de neve,
para abrir sangrentamente em sua carne
     essa chaga mortal
e injetar com os venenosos dentes
     o veneno da alma.
     Ela, porém, esmagando-te,
não será sequer bafejada pelo hálito sinistro,
110
nem roçada pelos dentes sanguinosos.
     Com as plantas vitoriosas
te comprimirá a cerviz altiva,
te esmagará e arrancará a cabeça.
     Tremam os sombrios infernos!
a Virgem derrubará cavalo e cavaleiro:
     Tremam os sombrios infernos!

Conceição da Virgem Maria

"A primeira alegria"


Felizes, pois, os pais que te geraram
e que do alto souberam de teu nascimento!
     Ó afortunado Joaquim,
que geraste de teu sangue a Virgem,
70
que geraria o Filho de Deus!
     Ana, afortunada mãe,
que trouxeste nas entranhas esta Virgem,
que em seu seio acomodaria o próprio Deus!
Ó suavíssima carga do materno seio,
querido penhor do pai, leve fardo da mãe!
75
Fazendo das entranhas maternas tua morada,
começas já a abrir do céu as portas,
a nenhum dos antigos franqueadas.
Com razão o exército dos anjos, santa menina,
já se prepara para levar-te ao berço
     mil congratulações.
Com razão fazem retumbar com novos hinos
80
     as abóbodas celestes
por te verem sem mancha concebida.
Por ti se delirá a culpa dos primeiros pais
que legou o ferrete da ignomínia
     à pobre raça humana.
Por ti, em grande número,
despiremos os andrajos de mortais
e seremos contados entre os coros celestes.
85
     Rejubile o firmamento!
     sem maldição alguma,
o palácio de Deus na terra se constrói:
     sim, rejubile o firmamento!

20 de novembro de 2014

Conceição da Virgem Maria

"A Imaculada"


Concebida em seio materno, como todos nós,
só tu, ó Virgem, foste livre do labéu
     que mancha os outros todos,
     e esmagas ao calcanhar
a cabeça do enroscado dragão,
50
retendo sob as plantas sua fronte humilhada.
     Toda bela de alvura e luz
não houve sombra em ti, doce noiva de Deus!
Jamais se estampou no teu peito a mancha do crime:
nódoa alguma, por mínima que fosse,
empanou jamais tua beleza.
55
Ó formosura sem par,
nimbada pelo brilho das virtudes,
puderam ofuscar toda a beleza angélica!
     A tua imagem bela
grava, ó Virgem Imaculada, em nosso peito,
e que essa formosura ao meu olhar seduza!
60
Foi esta imagem o enlevo dos profetas
que te decantaram nos seus versos.
Designaram-te sob variados símbolos,
     suspirando longamente
por que teu Filhos lhes trouxe a salvação.
Oh! quanto desejaram, graciosa Virgem,
     contemplar os teus olhos
no esplendor do firmamento rutilante!
65
Quanto quiseram, a teus pés, sorver a inspiração,
a suave melodia que jorrava de teus lábios!

19 de novembro de 2014

Conceição da Virgem Maria

"Na mente de Deus"


25
Antes de lançar com a sua palavra
     os mundos pelo espaço,
antes de estender a terra imensa,
já Deus te concebera em sua mente eterna
e te destinara para sua Mãe
     na glória da virgindade.
Qual serias então aos olhos do divino Pai,
30
quando surgiu no universo o turbilhão dos mundos?
Ainda as ondas do mar sem limites
     não rojavam pelas praias,
nem deslisavam o rio em curvas caprichosas;
ainda do tremedal fecundo das fontes não brotavam,
nem assentavam sobre as moles gigantescas
     os picos alcantilados:
35
E já te concebia em sua mente o Pai supremo,
que tu havias de conceber em teu seio, como a filho,
para purificar o mundo inteiro
     das hediondas máculas
e ser eficaz medicina as minhas chagas.
quem pode dizer a tua formosura, o teu encanto,
40
se te idolatrou o artífice divino?
Futura salvação, prometida ao primeiro pai.
Tu lhe havias de lhe restituir a vida
no casto fruto de tuas entranhas.
     Com o letal veneno
Eva nos havia de corromper:
     concebida sem mácula,
apresentar-nos-ia tu o antídoto.
Tremeu, ao nome da segunda mulher,
45
     a astuta serpente,
que enredara em seus laços a primeira.

Poema da Bem Aventurada Virgem Mãe de Deus Maria

Primeira tradução portuguesa em ritmos feita sobre o texto contemporâneo do manuscrito de Algorta

(São José de Anchieta)

- Transcrito como obséquio de minha escravidão de amor-


Infância de Maria

Exordio


1
     Cantar ou calar?
Mãe Santíssima de Jesus, os teus louvores
hei de os cantar ou hei de os calar?
     A mente alvoroçada
sente-se impelida pelo aguilhão do amor
a oferecer a sua rainha uns versos...
5
Mas receia com a língua impura
     de cantar tuas glórias:
inúmeras culpas carregam-na de manchas.
Como ousará mundana língua enaltecer
a que encerrou no seio o Onipotente?
Apavorada a pobre mente foge,
    a não ser que o teu amor
expulse do coração o medo que o possui.
10
     Porque temer incerto?
     Porque há de gelar o peito?
Porque fria se encolherá a língua?
Mas... és tu que me obrigas a cantar:
acodes a esforçar-me balbuciante
a revigorar-me a mão tremente.
15
Tu me estreitas ao materno seio,
tu me ergues o coração prostrado
e o cumulas de graças celestiais.
Oh! se o amor da Mãe divina me não dobrar,
se à glória da Virgem meus lábios não se abrirem,
que meu coração vença em dureza
20
     a pedra, o ferro e o bronze,
     o diamante indomável!
quem me dera encerrar na arca do peito
     a tua virginal imagem,
para envolver-te, piedosa Mãe, em chamas!
     Sê tu, com o teu menino,
O único prazer, anseio, amor do meu coração!