- Como obséquio de minha escravidão por amor -

30 de maio de 2015

Lamentação aos pés da Virgem

A doce melodia



735
     Ergo-me, então:
A alma amarrotada pelo peso de meus crimes,
o antigo torpor a lavrar ainda
     no corpo entumecido.
Apenas teu olhar me atingiu, Virgem amável,
     o rubor cobriu-me a face,
a cabeça pendeu-me para o chão.
Meus olhos nada mais viram, as lágrimas não jorravam:
740
As pálpebras apertadas seguravam os olhos cheios.
     À tua vista, ó Imaculada,
fugiram-me dos lábios as palavras:
o medo enregelou-me a língua entorpecida.
A mente estremecia, cônscia de sua torpeza:
meus crimes numerosos fulminaram-me.
745
     Os ouvidos somente
sorviam as tuas divinas palavras,
ansiosos de aprender em teus lábios
     uma expressão de carinho.
     E eis que de teus lábios,
se não me enganou louca ilusão,
destacou-se uma voz que eu conhecia:
     "Ergue-te, vem comigo
para o templo do Onipotente,
750
tu aqui meu servo serás perpetuamente!"
     Ouvi, e me voltou a vida,
e a língua me soltou e exclamei:
"Eia, Virgem bendita, sigo-te daqui por diante
     por onde quer que fores!"
     A morte, o ódio eterno,
a repulsa da divina face, a pena que não morre,
eis aí o que meus crimes mereciam.
755
Mas, se ao indigno restituis com a vida
     o teu doce amor,
esta será para mim a melhor glória
     de teu carinho de mãe!"
Assim falei: vi-te sorrir ao meu pedido
     favoravelmente...
nova esperança penetrou-me a alma.
Apossou-se de meu coração a santa audácia
     de imitar tua vida,
760
de te seguir por toda a parte e por toda a vida,
     de longe ao menos!

29 de maio de 2015

Lamentação aos pés da Virgem

A última esperança



Ao soltar estes gemidos, quando minha alma,
resolvida já a voltar ao seu Esposo,
     chorava a sua desgraça,
o torpe amante me instigava ao prazer
720
e a soltar as rédeas à devassidão:
"Nenhum prazer às de encontrar em morrer!
enquanto é tempo deixa-se ir docemente
     ao léu da corrente!"
Inclinava-me um pouco, e para logo
     a paixão me arrastava,
e, vencido, aos costumados grilhões
     os punhos me ligava.
725
Imersa no tenebroso báratro dos vícios
minha lama sentia-se feliz nos seus delitos.
     E quanto a morte veio,
e nenhuma esperança de salvação eu tinha,
     quando asquerosa
reclamou o leito que lhe pertencia,
     de repente
não sei que suave murmúrio de mansa brisa
730
soprou-me aos ouvidos do coração estas palavras:
"Oh! Quanto tempo te hás de revolver
assim enlodaçado neste charco?
Ergue-te, vem prostrar-se aos castos pés da Virgem!
     Se assim imundo
Ela te acolher com semblante amável,
não temas, pois ela lavará as tuas manchas."

28 de maio de 2015

Lamentação aos pés da Virgem

Sobre as ruínas da virgindade (II)



Tu, infiel, violaste o juramento
com que selaras a tua pureza
     o amor espezinhado chora,
a fidelidade se desfaz de dor.
     Desagradou-te o Esposo,
abraçaste um hediondo adúltero.
A morada hospitaleira do Senhor tornou-se
     o covil de um ladrão!
Desprezaste o Rei para lançar-te aos braços
     do tirano infernal:
680
trocaste por uma amo infame um Pai glorioso.
Afastas o amigo sincero, que te adora:
rendes-te ao pérfido inimigo, que te odeia.
E, por que não choras tu, ó desgraçada,
por teres ofendido a este Pai bondoso
que devera ser o único amor de tua alma?
685
Por que, ó celerada, não gemes de dor,
por teres desprezado o Onipotente,
a quem deveras tributar a devida glória?
Por que não te dóis, ó infiel esposa,
de teres violado a promessa ao casto Esposo,
de teres maculado o leito virginal?
Desonraste no leito imundo o bordel
     a glória da aliança,
690
longe do casto Esposo, ao peito do cruel carrasco!
Mísera, que delírio te fascinou?
Que perversa volutuosidade te arrastou?
Que paixão te submergiu, ó tresloucada?
Veemente sorvedouro de águas imundas
     te arrebatou, infeliz!
aos mais profundos pântanos da lama.
695
Jazes como oculta ao Rei dos céus altíssimos:
não tens o celestial amor de teu Esposo!
Emaranhada na teia de teus próprios vícios
o torpe amante te embala ao asqueroso peito.
     Ó naufrágio imenso,
que nenhum esforço poderá salvar!
700
Ó tesouros perdidos para sempre!
     Ó veste imaculada,
não voltarás à candura de outrora!
Ó glória, não alcançarás jamais o brilho antigo.
Ó santa virgindade, tão grata ao Belo Esposo,
que desgraça, que fera tempestade te esfolhou?
705
De ti, agora, resta-me uma imagem longínqua:
     uma vez abandonada,
retiras-te infelizmente para não mais voltar!
Roto meu, oh! Torna-te macilento!
Olhos meus, chorai tamanha ruína!
Que o pranto vertido conspurque as faces prazenteiras!
Lágrimas, gemidos, prantos, lamentos
710
de dor, de terror, de pavor, de horror
     caí sobre mim!
     Sepultai esta alma
nos abismos cruéis do sofrimento
e mergulhai-a na melancolia
     até o fundo do inferno!
     "Ó Pai celeste,
ou tu me escondes nas trevas sempiternas,
para não mais ofenderem meus crimes
     a teus puros olhos,
715
ou tu me esmagas a carne rebelde
     na mó da contrição
e minha vida se torne a de um digno filho teu!"

13 de maio de 2015

Lamentação aos pés da Virgem

Sobre as ruínas da virgindade (I)


Infeliz de mim! Fugiste ligeira dos meus olhos,
porque a longa demora me retardara os passos.
636
Eis que o feroz inimigo me lança brandos dardos
e consegue do peito arrancar-me a couraça.
Arrombando os portais mal vigiados,
     saltando as trincheiras
arrebentou-me os tesouros da alma e do corpo.
     Já tarde, muito tarde
entrei a contemplar minhas tristes ruínas:
640
"Ai! Foi-se, exclamei, a flor da virgindade!"
Lançando contra o peito os dois punhos cerrados,
chorei a negra ruína com estes tristes gemidos:
     "Ai de mim! Minha trincheira...
Quem a derrocou tão irreparavelmente?
Que malvado me forçou as portas cerradas da alma?
646
Que fera tão cruel, ó minha herdade bela, 
     te derribou a sebe?
Que monstro destruiu tua muralha?
Agora, sem muros, és presa de qualquer ladrão,
     és covil aberto
a quantas feras a ti se acolherem...
Por que, supremo Pai, me trouxeste à luz do mundo?
650
Por que me lançaste do materno seio
     ao chão duro da terra?
Oxalá minha vida se tivesse desfeito
     ao despontar a existência,
e teus olhos não me vissem neste estado horrendo!
Oxalá me achasse morte e fosse a última da vida
a hora que houvesse de contemplar
     a ruína da pureza.
655
Mais suave seria sucumbir cruelmente
e ir sofrer todas as penas do inferno horrendo,
ó Pai amantíssimo, imensa bondade,
poder infinito, chama do eterno amor,
do que ultrajar a tua majestade
     com minhas obras nefandas,
660
e executar meus crimes hediondos
     diante de teus olhos.
Ó alma infeliz, disforme, adultera, asquerosa,
torpe e agrilhoada a um corpo imundo,
expulsa o torpor, rasga o canceroso peito,
revolve até o fundo a chaga de teus crimes!
665
     Quem, ai! desgraçada
te roubou a formusura da divina imagem?
Quem te maculou de imunda lama as faces?
Acaso és tua mesma, a quem outrora
lavou a límpida torrente do batismo,
e te fez do peito um cristal de neve?
670
Tu, a que o Espírito de Deus purificou
     no seu cadinho,
para dourá-la em labareda de ouro fino?
Foi a ti que o celestial Esposo
uniu a si em aliança indissolúvel,
ao te lavar os crimes em suas águas férteis?
A fidelidade, ó alma, onde a deixaste?
Onde perdeste o anel da aliança?
e o amor, aquele amor, que juraste honrar eternamente,
     onde o manchaste?

8 de maio de 2015

A perda da virgindade

Lamentação aos pés da Virgem

O belo encontro


     Apenas teu semblante
assoma no limiar do lar paterno,
todas as cercanias da cidade rescendem
     do mais suave aroma.
Senti este perfume, talvez julguei senti-lo:
o certo é que me pus a correr
620
seguindo o caminho por onde os pés me arrastavam.
Perguntei a mim mesmo: "Alma que fazes?
vamos, apressa-te, talvez ainda chegues
a contemplar o seu semblante virginal".
Saio como centelha em corrida vertiginosa,
     quando, de repente, ó Virgem,
te avisto ante os degraus sagrados do templo.
625
     Vê-la foi tombar trespassado
     por um dardo de amor!
Como tua beleza me seduziu os olhos!
O amor da encantadora virgindade
explodiu-me no mais íntimo do peito,
     em densas labaredas.
Resolvi vestir de aço a cândida pureza,
630
cercá-la de trincheiras eternamente trancadas
     com férreas traves,
e abrasar-me, ó Virgem, recalcando tuas pegadas
no itinerário feliz de tua vida...